Governador do Tocantins ignora COEMA e sanciona lei com indícios de inconstitucionalidade

Foto: Esequias Araújo/Governo do Tocantins

Contrariando o Parecer n° 002/COEMA/CTPQLA (leia aqui), assinado por técnicos do Instituto Natureza do Tocantins (NATURATINS), Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMARH), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Secretaria de Estado da Fazenda e Planejamento (SEFAZ), Secretaria de Agricultura e Pecuária (SEAGRO), Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Tocantins (CREA-TO), Federação de Agricultura do Estado do Tocantins (FAET) e da BRK Ambiental, o governador do Estado do Tocantins, Mauro Carlesse (DEM), sancionou a Lei Complementar 124, de 5 de agosto de 2019, de autoria do Deputado Olyntho Neto (PSDB), dispensando a necessidade de licenciamento ambiental e outorga d’água para empreendimentos de piscicultura.

A nova lei alterou os critérios para classificação de pequeno porte para empreendimentos de piscicultura, no qual os piscicultores com áreas de até 5 hectares de lâmina d’água em tanque escavado, em barragens de acumulação de água da chuva com até 50 hectares e tanques rede de até 10.000 mil metros cúbicos de água ficam dispensados de licenciamento ambiental e outorga de direito de uso de recursos hídricos, devendo, obrigatoriamente, preencher cadastro no NATURATINS.

No entanto, de acordo com o parecer do COEMA (leia na íntegra aqui), a dispensa de prévio licenciamento ambiental para atividades de piscicultura representa “uma subversão da disciplina geral editada pela união que exige a observância das regras aplicáveis à obtenção das licenças previstas na Resolução CONAMA N° 237 de 19 de dezembro de 1997“.

O Parecer destaca também que cabe ao COEMA, dentro de sua competência, em âmbito estadual, determinar os padrões para o estabelecimento de portes, observados os critérios técnicos para cada atividade, e informa que a alteração trazida na lei não está em consonância com o que estabelece as normativas federais e estaduais que tratam sobre a temática.

Trata-se, portanto, de um completo absurdo jurídico que fere de uma só vez os princípios da prevenção, da precaução, do poluidor-pagador, do usuário-pagador, da responsabilidade, da gestão pública e o do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Agindo dessa forma o Estado do Tocantins acaba empurrando, coercitivamente, os empreendedores que pretendem investir no estado a uma situação extremamente frágil do ponto de vista jurídico. Estabeleceram um caos normativo, uma vez que a norma estadual agora é menos restritiva que a federal, em claro ferimento ao art. 24, VI da Constituição Federal. Nenhum empresário sério quer investir em um estado onde as leis não possuem lastro constitucional, principalmente se nesse estado há instituições atuantes como o Ministérios Públicos Estadual e Federal. Esse tipo de insegurança jurídica normalmente acarreta em perdas financeiras. 

Foi exatamente o que já aconteceu no Tocantins com a Lei Estadual N° 2713/2013 que, em seu art. 10, dispensou a necessidade de licenciamento ambiental para atividades agrossilvipastoris. Essa lei prejudicou muitos produtores rurais, uma vez que os bancos públicos, que se pautam também pelas normas federais para elaboração de sua lista de exigências, continuaram a exigir o licenciamento ambiental para liberação de financiamentos. O mesmo acontecia nos casos de embargos aplicados pelo Ibama que, por ser órgão federal, que só poderia suspendê-los mediante a comprovação da regularização ambiental respeitando também as normas federais.

Logo após, a Procuradoria Geral da República (PGR) ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 5312), defendendo, dentre outros argumentos, que o estado do Tocantins teria “usurpado a competência da União para legislar sobre esta matéria”. O Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, cinco anos depois, pela inconstitucionalidade do art. 10 da Lei 2.713/2013

Igualmente insensato foi o caso do artigo 3º da Lei nº 1.939/2008 do Estado do Tocantins, a qual autorizava a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Proteção Ambiental para pequenas construções com área máxima de 190 metros quadrados. Em mais uma Adin ajuizada pela PGR, ela argumentou que “a norma estadual teve como objetivo específico beneficiar proprietários de chácaras às margens do Lago da Usina Hidroelétrica Lajeado, violando o princípio da impessoalidade”. Novamente o STF julgou, dez anos depois, por unanimidade, pela inconstitucionalidade do art. 3º, III, l, da Lei 1.939/2008.

Não há dúvidas que é exatamente isso que vai acontecer no caso da Lei Complementar 124/2019. O STF terá que, mais uma vez, corrigir o trabalho dos deputados que a sociedade paga caríssimo para nada mais do que fazer… leis. Mas o grande problema é o tempo que isso leva. Até lá, quem arca com todo esse ônus da insegurança jurídica é só um lado: o do empreendedor.

É importante destacar ainda que, tão grave quanto a dispensa de licenciamento ambiental, seria a dispensa de outorga para utilização de recursos hídricos. A Constituição Federal traz de maneira inconteste em seu Art. 22, IV que “Compete privativamente à União legislar sobre: (…) IV – águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão”.

Como se vê, mais uma vez o Estado do Tocantins invade as atribuições da união para flexibilizar um regramento jurídico robusto sobre uma área que, definitivamente, não é de sua competência.

Imaginar como se dará daqui em diante a gestão de bacias hidrográficas conflituosas, como a do Rio Urubú e do Rio Formoso, com uma lei que permite uma única pessoa, sem qualquer processo autorizativo, a construir uma barragem de acumulação de 50 hectares, chega a ser tragicômico.

Da mesma forma, excluída toda a insensatez jurídica já comentada, soa quase que irracional a dispensa de qualquer avaliação ambiental prévia, sob o ponto de vista da disponibilidade hídrica e geração de efluentes, para a instalação, por uma única pessoa, de um empreendimento com o hiperbólico número de 2.500 tanques-redes de 4 m³ em um rio do estado do Tocantins. Não há qualquer fundamento técnico que possa subsidiar a dispensa de licenciamento ambiental e outorga de um empreendimento destas proporções em um recurso natural de tão alto valor econômico, estratégico e social.

Em suma, o parecer do COEMA, assinado por especialistas de oito instituições, foi bastante claro em seus próprios termos ao indicar a inconstitucionalidade do texto da lei e uma série de implicações de ordem técnica e jurídica no caso de sua aprovação. Mesmo assim, o governo do estado decidiu por ignorá-lo sumariamente. Na verdade, as instituições foram ignoradas e isso é gravíssimo em um estado democrático de direito.

Estes são apenas alguns fatos que põem em xeque toda e qualquer boa intenção política em fomentar a bilionária cadeia produtiva da piscicultura no estado. O “bilionária” explica muita coisa.

Luiz Queiroz d’Orange

O(a) autor(a) utiliza o pseudônimo de Arara Baleada porque, tal qual, embora ferido(a), pretende fazer muito barulho diante das tentativas de imposição de retrocessos na área ambiental. E-mail: setorpublico@vivoverde.com.br

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