Minimalismo pra quem? Uma mensagem dos trópicos

Guarda-roupa minimalista.

Como dizer a uma brasileira que nasceu pobre e, hoje, quando finalmente tem condições de comprar as roupas que sempre sonhou, após uma vida inteira exposta à publicidade, que ela deveria viver com o mínimo possível pelo bem do planeta? Com que moral eu posso lhe dizer que o consumo alimenta uma indústria de esgotamento dos recursos naturais e que, por isso, em vez de realizar seus sonhos materiais, ela deveria se sentir responsável pela luta sócio-ambiental, encabeçada justo pelos países que mais cresceram às custas do meio ambiente? Ou, então, como convencer uma mulher gorda a ter um guarda-roupa mínimo, se ela passou a vida toda se vestindo apenas com o que mal lhe cabia e que, hoje, devido a visibilidade plus size, finalmente encontra roupas que gosta para o seu tamanho?

Esses são alguns questionamentos que eu, enquanto pessoa que tenta seguir um estilo de vida minimalista, me faço com certa frequência, pois, embora deseje divulgar a urgente ideia de vivermos apenas com o essencial, também acredito que o minimalismo precisa ser incorporado criticamente para a nossa complexa realidade brasileira. É ao que se propõe esse texto: uma espécie de antropofagia cultural para recriarmos um minimalismo à nossa maneira, por nós mesmos.

Enquanto movimento artístico do século XX, o minimalismo influenciou as artes visuais, a música, o design, a arquitetura e a moda, até que hoje se torna um estilo de vida. O “menos é mais”, que outrora se referia a limpeza de elementos estéticos, hoje nos provoca a repensar o consumo em busca de uma vida mais significativa, com menos objetos e mais experiências memoráveis.

No meu último artigo, inclusive, contei como o fato de eu construir um armário enxuto e versátil me fez questionar os meus hábitos de consumo e comprar menos, bem como permitiu que eu me mudasse do Rio para Palmas com apenas duas malas. Ter menos coisas significou ter menos objetos demandando espaço de armazenamento, tempo de limpeza e manutenção e, principalmente, me mostrou que quanto menos eu tenho, um pouco mais livre eu me torno. E a lista de libertações é realmente expressiva. Só no âmbito do guarda-roupa, me livrei das tendências da moda, das compras por impulso e de ter um armário abarrotado de coisas que eu não uso e não preciso. Em suma, me livrei da culpa e da frustação do dinheiro mal gasto em forma de roupas que não me representam. Hoje, antes de comprar, pesquiso e reflito mil vezes antes, e muito disso se deve às questões levantadas pelo minimalismo.

Por isso, eu realmente acredito que o bichinho do “viver com menos” te ajuda a pensar sobre o que te é essencial e acaba desencadeando verdadeiras transformações nos valores de quem o adota como um estilo de vida. Para se ter uma ideia, ao nos questionar sobre a quantidade de coisas que abarrotamos ao nosso redor, passamos a refletir também sobre a quantidade de horas dedicadas ao trabalho (que, no fim, vai sustentar o nosso estilo de consumo). Afinal, de quanto dinheiro precisamos para viver? O que vale mais: bens materiais ou tempo para se dedicar ao que realmente importa? Aliás, o que realmente importa para você (viver bem)? Já meditou sobre isso? Qual o valor das pessoas nesse paradigma capitalista de compras? E me refiro aqui tanto às pessoas que consomem quanto às que produzem esses objetos que passamos uma vida inteira acumulando.

Essas perguntas nos levam também a descortinar o ciclo de produção desses objetos. No caso das roupas, se considerarmos desde sua criação enquanto projeto, sua confecção, até o seu descarte, passamos a nos questionar sobre a qualidade com que esse processo é desenvolvido: Quem são as pessoas por trás das roupas que compramos? Como essas peças são descartadas? De que são feitas? Quando nos interessamos por essas questões, descobrimos por exemplo a exploração sócio-ambiental nas fábricas de roupas de Bangladesh, que garantem os preços baixos e super atraentes das blusinhas da Zara (e se você desconhece essa questão e quer saber mais, indico o documentário “The True Cost”, do Netflix, que ajuda a visualizar bem esse panorama). Por isso, em resposta ao sistema Fast fashion, que traduz rapidamente a moda das passarelas para as lojas, surge o movimento do Slow fashion, que produz roupas em um ritmo mais lento e defende que devemos rever, na verdade, toda a velocidade de consumo e descarte do nosso armário. Resumindo, nas palavras da estilista Vivienne Westwood, um lema que costura essas ideias é: ter menos, comprar melhor e fazer durar. Por uma vida simples, crítica, sustentável e significativa, na construção de um mundo em que pessoas tenham mais valor (do que coisas). Mas será que esse minimalismo funciona igualmente para todo mundo?

Em nome de uma vida mais simples e de um armário enxuto, na Europa e nos EUA, o guarda-roupa minimalista é conhecido por suas poucas peças em preto, branco e cinza. Acredita-se que essas cores neutras garantem praticidade na hora de fazer combinações. O objetivo é ter menos roupas e menos cores. E a decoração também segue essa linha de pensamento. O estilo escandinavo, adorado pelos minimalistas, já é uma referência em design de interiores justamente por ter poucos objetos e privilegiar linhas geométricas e cores neutras. Mas e o que seriam cores neutras para o Brasil? O que é viver com pouco num país de industrialização tardia?

Decoração minimalista, estilo escandinavo.

Essas perguntas me inspiram a pensar sobre um possível minimalismo à brasileira, colorido, orgânico e que considere a nossa realidade social. Se por um lado concordo que devemos nos questionar sobre o ciclo de produção dos objetos que consumimos e buscar saídas mais sustentáveis, por outro, entendo que todas elas devam ser pensadas por nós, e adequadas à nossa realidade complexa, colorida e desigual. Precisamos construir as nossas próprias rotas para se viver com menos e não aplicar, como sempre fizemos, um modelo de pensamento estrangeiro no nosso dia-a-dia, tão complexo e diferente do europeu.

Acredito que devemos descolonizar o estilo minimalista, a começar pelo guarda-roupa. Lá fora, é comum seus adeptos construírem o que chamam de um guarda-roupa cápsula, com apenas 33 peças para aproximadamente cada estação do ano. De fato, deixar à vista apenas as poucas peças de roupas que irão usar nos próximos três meses, ao longo de estação, facilita o trabalho diário de se vestir. E se as peças são em cores neutras então, como preto, branco e cinza, a praticidade parece aumentar. Mas e se você mora em um país que vive as 4 estações num único dia, como aplicar o armário-capsula à sua realidade? Se nós, aqui no Brasil, simplesmente pegarmos as 33 peças de cada estação, que totalizam 132, e deixarmos à vista, retornaremos ao problema inicial de um guarda-roupa abarrotado, que não nos permite visualizar todas peças e sempre nos dá a sensação de que não temos o que vestir. Voltaríamos à estaca zero. Portanto, o conceito de guarda-roupa cápsula, ao meu ver, não resolve o nosso problema.

O mais apropriado para nós seria montar um guarda-roupa inteligente, um armário funcional para o lugar em que se mora, seguindo o estilo que você gosta. No Tocantins, onde eu vivo, por exemplo, é praticamente verão o ano todo, diferente da realidade de quem mora em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro. Mas, embora diferentes, todas essas cidades brasileiras têm muito em comum: sua natureza exuberante e colorida; uma população calorosa e criativa. Como então ignorar nossos traços identitários e construir um guarda-roupa apenas em escala de cinzas? Por isso, acredito que o minimalismo deveria ser adaptado para a nossa estética brasileira: e quem gosta de cores e estampas? E quem nunca pode comprar e agora pode? Como alcançar esse equilíbrio? Como ser um minimalista no Brasil?

Há muito para ser pensado ainda, mas do ponto de vista do estilo pessoal, meu objeto de trabalho, posso colaborar com alguns apontamentos. Quanto às cores, por exemplo, a verdade é que quando estudamos sobre características cromáticas como valor, temperatura e contraste, é possível construir facilmente um guarda-roupa colorido, com poucas peças e de forma que todas elas se combinem. Não precisamos nos enquadrar no estilo europeu. O conceito de cores neutras é relativo, pode variar de acordo com o contexto cultural e, portanto, pode-se ir muito além da escala de cinzas.

O sol Poente, de Tarsila do Amaral.

Por isso, acredito que ninguém melhor do que nós brasileiros para criar o nosso minimalismo dos trópicos, que reflita e se adeque a nossa identidade colorida, diversa e socialmente repleta de demandas reprimidas. Penso que quem hoje pode comprar o que sempre sonhou, deveria poder fazê-lo com consciência crítica, tendo a chance de se libertar desse estilo de vida pautado em consumo, mas sem receber sobre suas costas a culpa por todo o colapso ambiental. Que a mulher gorda possa comprar a sua roupa plus size para finalmente se sentir bonita, enxergada pela moda e de bem com o seu corpo. Que tenhamos todos o nosso guarda-roupa enxuto, versátil e colorido como gostamos, enaltecendo o nosso estilo brasileiro de nos vestir. Que todos possamos exercitar o desapego, comprar melhor e viver com menos, que não é o mesmo que viver com pouco, pois já somos privados de tanto…Inclusive, é bom lembrar que, só se desfaz com facilidade dos seus pertences quem previamente sabe que pode comprar tudo outra vez caso mude de ideia, e esse privilégio é bem raro em se tratando da nossa realidade sócio-econômica.

Portanto, penso que o nosso minimalismo deveria ser mais gradual, sem culpa, sem extremos e, sobretudo, sem a europeização do nosso estilo de vida. Pelo contrário, talvez assim possamos inspirar o escandinavo a ir além do seu pretinho básico e ensinar ao mundo da moda que, para nós, “color is the new black”.

Gostaria de agradecer a mulheres incríveis que acompanho nas redes sociais e cujos trabalhos me ajudaram a organizar minhas ideias na forma deste texto. São elas: Giovanna Nader, Ana Soares, Carol Burgo e Carol Delgado. Muito obrigada. Vamos juntas.

Dandara Dantas

Dandara Dantas é graduada em Comunicação Visual, Mestra em Artes Visuais e Doutora interdisciplinar em Arte e Ciências pela UFRJ. Pesquisa criação imagética por meio das roupas e atua como consultora de estilo com foco em minimalismo, em uma perspectiva brasileira e feminista. Compartilha pensamentos e experimentos no instagram pelo perfil @maiscoremenoscoisa Contato: estilovivoverde@gmail.com

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